GRACILIANO RAMOS: UM COLOSSO DA NOSSA LITERATURA
Anos atrás voltei meus olhos para a literatura quando fui instado a voltar a dar aulas da mesma. Neste texto, venho aproveitar o espaço para relembrar um colosso da literatura brasileira: Graciliano Ramos.
Inicialmente, vale citar que o autor alagoano nunca fora vítima tal como Monteiro Lobato por parte do mundo adulto. Ele é considerado nas faculdades de Letras e por estudiosos da literatura como um dos maiores escritores brasileiros. Porém, pseudoestudiosos, sendo alguns deles com mestrados na área literária, negam-lhe o posto central no panteão do modernismo brasileiro. O topo, que é o seu lugar, fica com Guimarães Rosa, mas este, a meu ver, muito superestimado é, enquanto o nobre Graciliano é subestimado.
Anos atrás, precisamente em 2008/2009, a editora Record relançou sua obra com recuperação de textos originais e certas correções feitas pelo próprio escritor. Nisso, aproximamo-nos do grande e monumental romance, Vidas Secas, que já passa de 70 anos de sua publicação e que nesse relançamento ganhou edição especial limitada a 10 mil cópias, com capa dura e ilustrações especiais. Ademais, recebeu também fotografias em que se refazia o percurso de Fabiano, sinhá Vitória, Baleia e os meninos. Espetacular!
Agora, perguntarão-me alguns que leem. Vidas Secas? Sim. Está entre as melhores obras que posso afirmar ter lido e certamente entre as dez mais do Brasil. Muito conhecida é a passagem em que Graciliano narra, por exemplo, a agonizante e excruciante morte da cadela Baleia. Aos que sabem e os que não sabem, Fabiano vagava com a família pelo famigerado sertão nordestino quando a cadela aproxima-se da morte. Para abreviar-lhe o sofrimento, Fabiano decide então que irá matá-la. Segue o trecho para situar o leitor:
“Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles. Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o cachimbo. (…) Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.”
Muitas das qualidades que intento elencar, que demonstrarão que Graciliano é um mestre ímpar da língua e literatura de língua portuguesa, estão presentes no trecho acima. O autor de Vidas Secas, que era declarado de esquerda, era contra o que se chamava de arte engajada, e por isso evitou fazer um romance de denúncia social, cheio de anseios libertários que somente desmereceriam a obra para a posteridade. Evitou o proselitismo e venceu como autor de Letras gigantes. Como bom escritor, recusou-se ao que pregava Jdanov, famoso comissário de cultura da finada URSS e que fundara o famoso realismo socialista. Para Graciliano, tudo isso era uma forma de diminuir a literatura, que não precisa de engajamento para tornar-se algo que já é. Maior do que o próprio humano.
Baleia, a cadela mais famosa da literatura brasileira e quiça, mundial, é muito mais comovente quando está se arrastando sobre duas patas, ou dois pés, quando simplesmente “anda como gente”. Graciliano não vai depreciar o homem, o humano com essa afirmação, fazendo uma comparação com um Cão. Antes disso, ele humaniza o animal, a cadela, porque derrama sobre nós, gente, uma compaixão sem limites. E quem já leu Graciliano a sério sabe que uma de suas características maiores é essa compaixão inclemente pelo ser humano. Certa vez, em determinada entrevista, José Saramago declarou que tinha em si um “marxismo hormonal”. Isso se traduz que ele dizia que não merecemos a vida. O colosso português nos negaria aquilo que Graciliano deu a baleia. Um mundo com preás gordos e enormes, de jeito nenhum.
Se no mundo de Baleia tudo é agonizante e rudimentarmente primitivo, repleto de sensações e sentimentos básicos, a linguagem literária de Graciliano é fluente, rigorosa e muito culta, sem nenhuma pegadinha vocabular que exigiria uma desconstrução linguística do leitor. Para o autor alagoano, as imagens e adjetivos nascem das coisas. Percebe-se isso na tradução que Graciliano fizera de “A Peste”, de Camus, em 1950. Tudo em Graciliano é duro, quente, cheio de sensações que fazem o leitor entender claramente a realidade que está lendo. Sente-se presente ali. Graciliano não deseja em sua fase regionalista folclorizar o sertanejo, com tentativas de torná-lo algo metafísico, como o romantismo fizera com o índio brasileiro, por exemplo. Para o escritor, a língua e suas formas mais básicas de regras já lhe bastavam para criar grandes romances e obras literárias.
Em seu ponto de vista (compartilho com ele o meu) a literatura é um jogo de inteligência. Uma forma de analisar as situações do mundo e colocá-las em teste. Em contraste com José Saramago e sua visão de mundo, Graciliano nos permite ser humano, demasiadamente humanos, para recordar Nietzsche.
Até ser encarcerado e preso o baluarte da literatura nacional foi. Entre 1936 e 1937, Graciliano fora preso acusado de ser comunista, isso no governo Vargas. Contudo, como grande escritor que é, transformou a sua via crucisem excelente livro intitulado Memórias do Cárcere. E é nele que se conhece o gigante Graciliano. Basta perceber que ali ele elege a caatinga como a prisão que milhares de brasileiros, tal como ele, um Fabiano da vida, naquele momento encarcerado, vivia. Graciliano não tentara ser neste livro um herói. Demonstrou o homem que era, cheio de virtudes e defeitos. Tinha suas dores mais recônditas e expôs cada uma delas ao leitor.
Os temas de Graciliano não raro excedem o ser humano. Basta ver no livro Insônia. Ninguém descansa nunca. Percebe-se o mesmo quando o violento Paulo Honório, de São Bernardo, consuma a sua obra. O que vai lhe restar é solidão e insônia. Dor principalmente. Em Angústia, uma de suas mais completas obras, o tema reaparece. O personagem não consegue ter paz. O homem de Graciliano Ramos vive em uma eterna vigília, presente num mundo hostil e degradante, tal como uma cadeia, uma paisagem íntima ou a caatinga.
Graciliano, conforme foi dito, traz a compaixão pelas dores do homem como sua marca, mas não finaliza o assunto com este mesmo tema. Ele é um moralista e não um juiz beneplácito. Paulo Honório, acaba, por exemplo, matando o que mais estimava e tentava proteger. O que dizer de Madalena, a esposa no romance? Graciliano não apresenta o personagem, que narra a história em primeira pessoa como um monstro. A compaixão de Graciliano nos permite vê-lo como só mais um desesperado, como qualquer um de nós, tentando entender o mundo e nele... sobreviver.
Ao concluir esta breve percepção sobre a colossal obra de Graciliano Ramos, recordamos de que, certa vez, outro presidiário escritor, Oscar Wilde, escreveu enquanto preso que “todo homem mata aquilo que ama”. É por estas e outras que, como a cadela baleia,caminhamos arrastados pela vida em busca de um perdão, mesmo que seja divino. Para o mestre alagoano, somos dignos de amor. E merecemos o mesmo que Baleia. Um mundo repleto de preás gordos, enormes.
Autoria:
Prof. Dr. Ivo Di Camargo Junior
Docente do Centro Educacional Paulo Freire